O Que Me Disseram - Parte I

O velhinho me olhava desconfiado de longe. Provavelmente me confundira com alguém, com alguma lembrança. Desviei o olhar de seu rosto esperto e continuei andando de cabeça baixa,  ao pé do ouvido Well, I've been in town for just about fifteen whole.


Por um segundo nossos olhares se encontram de novo, vi resplandecer uma saudade do meu avô. Senti algo pesado dentro de mim, alguma coisa caía rumo aos meus pés, quase bambeou minhas pernas.
Três passos largos à minha frente, ele se mantinha sentado, segurando uma bengala bordada, foleada à ouro. Um passo, dois, três : ele segurou meu braço. Não precisou dizer nada, suplicava pelo olhar, implorava. Era mais que se tivesse ajoelhado aos meus pés. Eu não entendia. Ele me soltou.
Gaguejei até em pensamento. E soltei um susurro que nem eu mesma ouvi o que era, de tão baixo. Não precisamos trocar muitos gestos até que eu me interessasse pelo o que ele tinha a dizer.
_ E foi assim, aquele homem de branco do hospital pensou que fosse Deus, e me determinou um tempo até o fim. Entre três e seis meses.
_ E.. e.. c-c-como...
_ Como me sinto? Me sinto mal, descobri o quanto é feliz ser triste, lembrar das coisas boas, ver  os amigos partirem e nunca ir. Contruí uma vida inteira nesta cidade, agora será apenas o meu fim, irei sabe-se lá pra qual estado pós-morte, e em volta do meu corpo se juntarão parentes como um formigueiro.
A primeira lágrima escorreu, não no rosto dele, mas no meu.
_ Dois ou três amigos meus estarão lá pra assistir. O resto já se foi. Quem vai encher mesmo a minha humilde casa serão os filhos de amigos, amigos de filhos e pessoas que nem me cumprimentariam quando me vissem na rua.
Eu não sabia o que fazer, continuei a ouvir. Era triste, era insano conversar com alguém que eu não conhecia, mas podia sentir junto dele tudo que ele dizia. Era insano mesmo.
_ Sabe minha filha, você é muito nova para entender. Todos os dias quando vou deitar é um alívio de que venci, mais um dia. Desde que nasci tenho medo de morrer a todo instante: infarto, tiro, carro, susto, derrame... ou seja lá o que for. Sempre ouvi mamãe dizer que todo dia pode ser último, e pode ser primeiro. Morria de medo de morrer, agora não. Já me tiraram a ansiedade, minha morte está planejada, sei o tempo que tenho e estou tentando me virar para terminar minha vida nos próximos três meses. Os dias e as semanas que eu viver a mais que isto será lucro, eu poderei fazer o que quiser e as contas só chegarão depois que eu morrer.
_ Qual é mesmo o seu nome?
_ Isto não importa muito, pode me chamar de tio, ou de vô... prefiro.
Fiquei perplexa. Imaginei naquele momento a vida sob um tempo totalmente demarcado, toda hora parece ser última, tudo é fim. É poesia pura, que delírio!
_ Menina, vá brincar, correr, fazer o que tiver pra fazer. Deixa este velho bobo por aqui, vá, vá.. - e acenou pra que eu saísse.
Não sussurrei uma só palavra e saí pensativa e medonha. Eu queria tanto me agarrar à história daquele senhor e descobrir toda a vida dele, ouvir tudo que ele queria me ensinar sobre a vida, era tudo tão calmo, tão poético, tão livro de auto-ajuda, tão filme de drama, e no fundo, no fundo era tão eu, que pensei que estivesse quase acordando (da realidade, porém).

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Pesquisa

04/08/2009

No final de 2007 eu perdia o sono semanalmente pensando em algum texto. O cansaço físico me impedia levantar da cama para anotar os poemas, textos e frases que vinham à cabeça. Criei então o Segundo Lílian, em Junho de 2008. Postando anotações feitas na madrugada, sonhos rememorados na manhã seguinte, inspirações do meio do sono vespertino. Sem habilidade de escrita tive um blog trágico, perdi meus leitores e a vontade de escrever.
No final daquele ano resolvi criar o Insônia Registrada. Já que todos meus textos eram decididos durante a insônia, ou me tiravam o sono. Era um novo blog, pensado diferente, com novo tema, nova forma de escrita, novo visual - que já foi modificado uma dezena de vezes - além de agora um período de vida bem mais traduzível em letras.
Hoje, o blog já virou um vício. Textos, links, vídeos, descobertas, lembranças... tudo vem pra cá. Tirando o sono de quem lê também. Tamanho vício me levou a criar um blog de esportes, um de filme, participar brevemente de um blog de humor e me fez até perder a vergonha do Segundo Lílian.
Porque segundo Lílian, a insônia será registrada.