Feliz Natal papaii noel!

Pisca-piscas pela cidade, bolas vermelhas nas árvores de natal, os sapatinhos atrás da porta, velhos gordos contratados em atacado pelos shopping centers para servir ao menos uns dias de papai-noel.
O capitalismo devorava décimos terceiros como um esfomeado com úlcera, o consumismo sobe a flor da pele, toda a classe média comprando presentes pra amigos, namorados, família e filhos. Beatas começavam reuniões por toda a cidade, e como sempre fazem em todo o natal, abre-se a bíblia e inicia-se então mais uma novena de natal, elevam suas almas a Cristo e pedem renovação, renascimento, quase a mesma ladainha do domingo de páscoa. Perus engordados o ano inteiro com ração cheia de trangênicos cacerígenos vão sendo degolados aos montes e entregues aos frigoríficos, para matar a fome do consumismo.

Lá no fundo de seu casebre dividido ao meio com os cupins estava o único homem realmente isento de toda a parafernália do Natal, talvez o segundo Gepeto dos contos infantis: Getúlio, um velho barrigudo, de pele rosada, barba longa e cabelos cacheadinhos. Quase um papai-noel. Nunca comemorou nenhuma data religiosa, para ele Jesus foi um líder religioso e nada mais, se fosse comemorar o nascimento de Jesus, faria-se necessário comemorar também o de Maomé, Buda, Gandhi e tantos outros.

Eis que encontrava-se ali o único homem que sabia verdadeiramente equilibrar o comunismo que sonhava com o mundo capitalista lá fora. O fato é que mais uma vez sua aposentadoria não tinha suprido seus gastos durante o ano, por mais que não gastasse muito. Mais uma vez se subordinaria aos vicíos natalinos e arrumaria um emprego qualquer de papai noel em um shopping destes.

23 de dezembro

Estava sentado em frente à lindas vitrines de vidro, enfeitadas com pisca-piscas. Aos poucos a fila de crianças para tirar foto com o bom velhinho diminuíam e sua transpiração aumentava mais a cada segundo. Lembrancinhas para crianças, beijinho na bochecha, tapinha nas costas e um leve: ho-ho-ho feliz natal.
O que ele realmente não entendia é porque o papai noel de um país tropical, em meio a um calor infernal usava roupas de inverno como se estivesse em meio à neve dos países do norte. Ah sim, era mais uma influência capitalista, norte-americana. E mesmo que tantos anos se passassem ele podia ser visto sempre na mesma cadeira abraçando crianças da classe média em véspera de natal, mas nunca se acostumava.
_ Sim, todos os anos a mesma coisa. O máximo que muda são as rugas, sempre aumentam.
Onze horas, informou as badaladas do sino de um presépio em tamanho real que fora posicionado à 20 metros atrás dele. Olhou com calma para os lados e não avistou nenhuma criança tentando chegar a tempo de uma foto. Levantou-se com bastante dificuldade, pegou o saco de lembrancinhas no chão jogou nas costas e foi andando para a diretoria do shopping, receberia o pagamento e um "até ano que vem". Depois de tudo acertado, e um fogão de brinde pelo 10º Natal em parceria com o mesmo shopping, saiu de lá afim de pegar um táxi e acordar só no dia 26.
_ Você não é papai noel.
Olhou para os lados, tentando entender de onde vinha a vozinha doce.
_ Oi?
_ Você é o papai noel?
Olhou de novo e não viu nada.
_ Quem está aí?
_ Quem mais seria? Te escrevo todos anos desde que aprendi à escrever, não é capaz de me reconhecer?
Tentou tirar de si todos argumentos que teria um papai noel para não reconhecer uma criança específica.
_ Me desculpe garoto, mas não posso te ver, como vou me lembrar quem é?
Saiu de trás dos carros um menininho sujo, com um saco de latas nas costas e o olhar de criança com fome na França Socialista.
_ Agora sabe quem sou?
_ Claro que sei, você é o mais especial de todos os meninos neste natal.
_ Vai ao menos me levar o presente que te pedi?
Revirou os bolsos e encontrou, por sorte, um último brinquedinho..
_ Toma.
_ Não te pedi um super-homem. Te pedi pra ser um.
_ Mas eu sou apenas um velhinho que gosta de crianças, não tenho super poderes.
_ Você nem se lembra o que te pedi.
Getúlio não entendia de forma alguma o que queria a criança, precisava urgentemente arrumar uma saída. Odiava ter que mentir lá dentro do shopping, aqui fora então era como se estivesse sse suicídando aos poucos.
_ Onde estão seus pais?
_ Te disse que não era papai noel coisa nenhuma.
_ Hoho, sou quem então? Vovô noel? Nesta minha i...
_ Você é um empregado deste shopping fedorento em que não me deixam entrar. Se você fosse papai noel de verdade iria me visitar a meia-noite de amanhã e traria meu pai de volta.
Depois de mais algum tempo de conversa, viu que o menino tinha razão sobre tudo que falava, era pequeno demais pra saber tanta coisa, para ouvir o que ele tinha a dizer também. Não se sabe como, mas algo o convenceu a levar o garoto pra casa, dar um banho, um prato de comida e quem sabe uma cama quente.
Duas horas mais tarde, o garoto estava jantando à mesa de sua casa. E Getúlio percebeu que não sabia nem mesmo o nome da criança, e resolveu perguntar com muito medo de ser atacado pela genialidade infantil do menino cheio de curiosidades de novo.
_ Qual seu nome?
_ Francisco, pensei que soubesse.
E o tilintar de talheres rompeu com a conversa. Deu um abraço no garoto, depositando nele todas suas últimas esperanças de vida, as esperanças de um papai noel de shopping, de um velho comunista que sonhava com sociedades alternativas e devorava livros de Marx.
Deitou o menino na cama, deu-lhe na testa um beijo de boa noite, o ar quente que saía das narinas de Francisco assustou-o, e com um leve tropeço para trás acordou o garoto. Só teve tempo de ouvir:
_ Sabe papai noel, pensei que nunca me daria um pai. Agora tenho um, e é incrível que para mim todos os dias agora serão natal, obrigado papai noel, muito obrigado. Feliz Natal!
A exclamação de fim de frase, foi a última coisa que teve tempo de ouvir, sentiu seu coração acelerado ao ritmo de canções natalinas e depois não ouviu mais nada.
A maioria conta que avistou uma luz branca, uns falam que seguiu até ela e foi recebido de joelhos por Jesus, outros contam que viu a luz mas nunca seguiu até ela, continua vendo branco. Mas o menino Francisco sempre disse que ele ainda ouve canções natalinas e mesmo que ninguém perceba, passa pelo shopping todos os natais, pra rever na vitrine alguma miniatura de super-homem.

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Pesquisa

04/08/2009

No final de 2007 eu perdia o sono semanalmente pensando em algum texto. O cansaço físico me impedia levantar da cama para anotar os poemas, textos e frases que vinham à cabeça. Criei então o Segundo Lílian, em Junho de 2008. Postando anotações feitas na madrugada, sonhos rememorados na manhã seguinte, inspirações do meio do sono vespertino. Sem habilidade de escrita tive um blog trágico, perdi meus leitores e a vontade de escrever.
No final daquele ano resolvi criar o Insônia Registrada. Já que todos meus textos eram decididos durante a insônia, ou me tiravam o sono. Era um novo blog, pensado diferente, com novo tema, nova forma de escrita, novo visual - que já foi modificado uma dezena de vezes - além de agora um período de vida bem mais traduzível em letras.
Hoje, o blog já virou um vício. Textos, links, vídeos, descobertas, lembranças... tudo vem pra cá. Tirando o sono de quem lê também. Tamanho vício me levou a criar um blog de esportes, um de filme, participar brevemente de um blog de humor e me fez até perder a vergonha do Segundo Lílian.
Porque segundo Lílian, a insônia será registrada.