A gente não vê o tempo mudar

Eu não era uma criança muito solitária, mas gostava de ser. Às vezes me retirava num canto da casa com o velho relógio de pulso da minha mãe, que ainda é o mesmo, colocava a cabeça em cima dele de forma que eu pudesse ouvir cada 'tic' que ele fizesse arrastando os segundos. Outras vezes eu ficava tentando imaginar o segundo que a gente cresce, me imaginava com uma criança num berço do tamanho exato dela, e de repente as madeiras laterais faziam "nhec" e pronto, eu sabia que a criança tinha crescido alguns milímetros.
Eu achava que os minutos do relógio só mudavam quando a gente não tava olhando, e ficava olhando pra eles na esperança de esticar o tempo. E eu tinha toda a certeza que a lua sumia durante o dia pra mudar de fase, porque nada mudava na nossa frente. Eu nunca vi a lua diminuir. Você fica observando um tempão e vê que ela ta numa posição diferente do início da noite, mas não se lembra de ter a visto mudar. "Olha a lua caminhando". Não.

Muitos anos se passaram e parei de investigar a mudança mínima das coisas. Parei de medir minha altura semanalmente, balançar os dentes todos os dias pra contar quanto tempo ele demorava até cair.

Ao fim das minhas observações percebi um volume crescendo dentro da minha boca, como se garras de vampiro estivessem se formando, anotei mais essa. Devia ser uma mudança de formato na boca, à medida que a gente vai crescendo o corpo vai se transformando, mas eu achava que gengiva já era algo feio suficiente e não precisava daquele aumento relevante. Mas tudo bem, uma coisa que chama gengiva tende mesmo a piorar.
Fui visitar minha dentista, como eu fazia de 6 em 6 meses. Não é preconceito com as mulheres de cabelo curtinho, mas todas que conheço são muito secas, se é cabeleleira não tem o cuidado de manter meu cachinho preferido sem muitos cortes, se era a dentista não tinha cuidado ao aplicar a anestesia, se era a professora nem cuidado tinha. E a minha dentista era assim, bruta.
Foi me deitando e enfiando a mão na minha boca, como se eu fosse um ser morto que não fosse sentir dor. Era só uma limpeza de dente, mas ela conseguiu queimar minha boca com o jato de bicabornato pelo menos umas 3 vezes. Eu já tensa deitei na cadeira e fechei o olho bem forte, como se assim não fosse sentir dor. Escutei ela falando algo, o que era raro. Desbloqueei-me e perguntei: "o que?". - Tá encavalando um dente aqui, fala com a sua mãe pra vir falar comigo.
Sai de lá com peso na consciência, como me sentiria se a diretora da escola dissesse a mesma frase. Cheguei tímida em casa e contei pra minha mãe. Dois ou três meses depois eu começava meu tratamento. Descobri uma série de problemas que eu viria a ter com meus dentes. Pra isso usaria 3 tipos de aparelho dentário.
Como todo tipo de tratamento dentário, começou a série masoquista. Com otimismo anunciava-se 4 ou 5 anos de aparelho fixo (aquele dos quadradinhos) pra mim. Além de 6 meses com o freio de burro e até meus 18 anos com o outro que não sei nomear.
Sorte: meu dente que não nasceria nasceu, como usei o aparelho direitinho tudo voltou ao lugar rapidamente, nenhum dente encavalado, nenhuma cirurgia, nada de 4 anos com aparelho. Dois anos terminei tudo. Mas da última previsão não escapei.
_ Tem que usar este aparelho aqui, pra dormir, até nascer os cisos (...) e um pouco depois também. Que é pros dentes não voltarem a atrapalhar (...)
Passei seis meses usando o aparelho sem reclamar, os outros seis comecei a refletir se eu realmente precisava daquilo. Ficava 3 dias sem e sentia a mudança. Voltava a usar e doía pra voltar pro lugar. Um ano usando corretamente, mais meio ano usando dia sim dia não. Antes de completar 16 anos, sem ciso (nem juízo), abandonei a falsa dentadura na gaveta do banheiro.
E não tinha quem dissesse que eu precisasse, só a minha dentista. Mas, de criança eu já sabia: a gente não as coisas mudar, por mais que tentemos observar. Minha arcada dentária foi se abrindo, abrindo e abriu tanto que já não cabia mais no aparelho. Depois um lado começou a abrir mais que o outro, colocando medo na paciente rebelde.
Hoje, depois de muito tempo. Sorri para o espelho e comecei a me medir visualmente. Este lado aqui é menos parabólico, este dente aqui ta indo pra frente. Mas eu já estudei suficiente, não vou pagar outro carro pra minha dentista.
Peguei o antigo aparelho, remodelei - como ela fazia - e voltei a usá-lo. Agora é não olhar no espelho pra ver se os minutos pulam mais rápido e os dentinhos voltam pro lugar.

1 comentários:

Bruno de Abreu 20 de julho de 2009 às 18:55  

tinha umas manias assim quando era menor - acho que todo mundo tem, né?. lembro que eu não conseguia entender o mistério das letras cursivas. um dia fui conferir com a minha mãe se o que pensava sobre elas estava certo e comecei assim, despretensiosamente : "mãe, sabe aquele tipo de letra que vc escreve uns rabiscos e depois tem que explicar pra pessoa o que vc escreveu...? "
ah, o ponteiro dos minutos... e o das horas então? até hoje me pego tentando acompanhá-los... e sobre o aparelho "só pra dormir" , fiz a mesma coisa que vc, deixei de usar faz alguns meses... mas nem vou conferir se alguma coisa mudou, não... ( o que deve ter acontecido). como se diz aqui em pira, "deixe quieto" hehe... :P

texto muito bom!

Pesquisa

04/08/2009

No final de 2007 eu perdia o sono semanalmente pensando em algum texto. O cansaço físico me impedia levantar da cama para anotar os poemas, textos e frases que vinham à cabeça. Criei então o Segundo Lílian, em Junho de 2008. Postando anotações feitas na madrugada, sonhos rememorados na manhã seguinte, inspirações do meio do sono vespertino. Sem habilidade de escrita tive um blog trágico, perdi meus leitores e a vontade de escrever.
No final daquele ano resolvi criar o Insônia Registrada. Já que todos meus textos eram decididos durante a insônia, ou me tiravam o sono. Era um novo blog, pensado diferente, com novo tema, nova forma de escrita, novo visual - que já foi modificado uma dezena de vezes - além de agora um período de vida bem mais traduzível em letras.
Hoje, o blog já virou um vício. Textos, links, vídeos, descobertas, lembranças... tudo vem pra cá. Tirando o sono de quem lê também. Tamanho vício me levou a criar um blog de esportes, um de filme, participar brevemente de um blog de humor e me fez até perder a vergonha do Segundo Lílian.
Porque segundo Lílian, a insônia será registrada.